À Janela
Note: “À Janela” recebeu o 2o Prémio do concurso literário com o tema A Mulher e a Imigração, patrocinado pelo Instituto Camões e o Centro de Estudos Portugueses, University of California, Berkeley. O Prémio foi anunciado por Inês Pedrosa no jantar de encerramento do Congresso A Vez e a Voz da Mulher em Portugal e na Diáspora, 24 de Abril, 2005. Publicado em:The Voice and Choice of Women in Portugal and in the Diaspora, editor Deolinda M. Adão, Berkeley: Institute of Governmental Studies Press, University of California, Berkeley, 2011.
Lisboa, 1962
Tenho três anos. Estou de pé em cima dum banquinho com os cotovelos apoiados no parapeito da janela. Adoro estar à janela. Dizem, “Qual é coisa qual é ela, chega à casa põe-se logo à janela?” “É a Paula.” Sou eu, não é o botão. Sou eu. Tenho cuidado para não cair do banquinho, senão a mamã não me deixa estar aqui mais.
A nossa rua é estreitinha e não passam carros. Não cabem. A mamã diz que a nossa rua foi feita para burros e carroças. Quase que posso tocar na cabeça das raparigas grandes que estão a brincar ao pé coxinho mesmo por baixo da minha janela de rés-do-chão. Com giz azul e cor de rosa, desenharam um avião no alcatrão. A Ana Maria é que está a ganhar. Eu quando for grande, vou ser como a Ana Maria, com tranças e uma bata da escola às risquinhas. Debruço-me para agarrar numa trança, mas não chego lá. A Ana Maria, que estava desequilibrada a tentar pegar na pedrinha, vira-se de repente e faz-me uma careta. “Olha a bébé com a chucha, não tem vergonha de estar para aí a chuchar, a chuchar?” Fico paralisada e chucho na chucha com mais intensidade. Elas, as raparigas grandes, riem-se de mim, mas depois não me ligam nenhuma.
A mamã chama-me de lá de dentro. “Paula, ó Paulinha. vem cá à mamã.” Embora me sinta humilhada pela desfeita da Ana Maria e as suas tranças estúpidas, não quero abandonar o meu poiso. A mamã agarra-me por trás e eu agarro-me ao parapeito com força. Começo a berrar e a chucha cai no chão, no lado de fora da janela. A Ana Maria pega nela e entrega-a à mamã. “Obrigada, Aninhas, tu és sempre tão bem comportadinha.” “Não tem de quê, Dona Emília.” Que injustiça! Continuo a berrar. O meu orgulho doi tanto, tanto e quero a minha chucha. “Vamos lá que o papá está a chegar.”
Berro ainda mais porque quero ficar à janela, porque é tão bom quando o papá chega e sorri ao ver-me à janela, aquele sorriso radiante que só o meu papá tem. E depois o meu sorriso, como um eco visual, e eu a encher as bochechas como um peixe balão, porque o papá, com uma mão só, aperta-me as bochechas e sai um sopro como um punzinho. É por esse momento delicioso que eu espero à janela. E a mamã parece entender o meu pânico porque, com um suspiro, pega-me ao colo e senta-se no banquinho comigo. Ainda estou agarrada ao parapeito da janela e ficamos ali as duas à espera do papá. Sou feliz à janela, com a mamã, à espera do papá,
Toronto, 1967
Vivo em Scarborough num prédio de quatorze andares com janelas grandes e rectangulares. O nosso apartamento é no quinto andar. As janelas têm dois vidros e não abrem nem para fora nem para dentro. Num cantinho pode-se correr os vidros para entrar ar, mas há lá uma rede fininha e por isso não posso pôr a cabeça de fora. Nunca tinha visto janelas assim mas aqui é mesmo tudo diferente.
Já não gosto tanto de estar à janela e não é por ser mais velha. Aqui passam poucas pessoas a pé e as crianças não brincam na rua. A mamã diz que há sítios mais bonitos com árvores e ruas mais estreitas mas por enquanto temos que viver aqui. Que grande chatice. Divirto-me a contar os carros que passam a grande velocidade. São de todas as cores e grandes, enormes, como barcos. O papá diz, “No Canadá os carros compram-se ao metro.”
Foi o que fez mal cá chegamos. Comprou um Impala comprido e vermelho como as cerejas e descapotável. No verão fomos a lagos lisos como espelhos fazer piqueniques e nadar na água limpa e gelada. Ficava sempre arrepiada mas gostava daquele choque ao mergulhar pela primeira vez.
Mas agora é Inverno, as árvores estão nuas e cinzentas, o céu cinzento também e aqui estou feita parva a ver os carros a passar. Na televisão ouve-se o General Hospital. Tento aprender inglês com a televisão porque na escola fazem pouco de mim. “Doctor, willy live?” “Yes, dão-te crai missiz Robinson.”
A mamã vem ter comigo. Tem um ar preocupado. “Que horas são?” “Quase quatro.” “O teu pai já devia ter chegado.” Põe-se à janela e eu vou para ao pé dela. A mamã passa horas à janela à espera do papá. Em Lisboa ela trabalhava mas aqui fica em casa o dia todo sózinha. Gostava de ficar com ela mas tenho que andar naquela maldita escola aonde não conheço ninguém, a aprender aquele maldito inglês.
O telefone toca e a mamã vai a correr atendê-lo. Chama-me porque estão a falar Inglês. Pego no auscultador e oiço aquelas palavras estranhas mas percebo hospital. Fico atrapalhada e digo, “General Hospital, channel 7” desejando que não seja o verdadeiro hospital. A mamã, em pânico, agarra no telefone. “Hospital? Qual hospital? Qual hospital?” Sinto-me mal. Sinto um calor a subir-me à cabeça e depois um frio gelado aperta-me o estômago. Sei que estão a falar do papá. A mamã diz, “Mai ásbande? Ó meu Deus, ó meu Deus.” Desliga, corre para o armário, veste o casaco e agarra na mala. Estou paralisada mas sinto as lágrimas que me molham as bochechas. Queria que tudo voltasse ao normal. Queria olhar pela janela e ver o papá a sair do carro novo cor de cereja e depois eu a correr para ir ter com ele e ele a pegar-me nos braços e eu a sentir a fazenda áspera do casaco dele. Mas agora nada é normal. A mamã veste-me a canadiana que comprámos no Honest Ed’s a semana passada. Depois limpa-me as lágrimas com o lencinho branco que cheira a Evening in Paris. Diz, “Vamos, Paulinha, vamos buscar o papá.” Mas a mamã não deve saber o caminho e não fala inglês, Como é que vamos encontrar o papá nesta cidade estranha e fria?