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Eu queria escrever...

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Eu queria escrever...

Eu queria escrever sobre todos os açorianos que já conheci

Correu bem. A resposta banal só se justifica aqui por ser verdadeira. A entrevista com a
‘professora açoriana que vive no Canadá’ fora um momento meu, de oportunidade minha de falar do
meu trabalho-vida, máximo cume a que me permitira subir na procura de um desinstalar-me, de um
querer também aprender noutros lugares, de mais e outras pessoas. Cada vez mais açorianos na tua
vida, ainda não conheceste nenhum que não gostasse de ti!, a fala é da amiga Cláudia e foi com um
sorriso que lhe respondi. Siga o texto e seguisse a vida, desapegada. Estava feita a minha parte.

Sem ter família nem amigos nos Açores, quantas vezes já lá estivera com a imaginação. Quem
me conduziu primeiro foi Mestre de Saber para mim, muito mais do que de Latim, o meu professor
Raimundo, terceirense. Os serões na sua casa, entre amigos, e a minha primeira prova do doce licor
de Maracujá, minha iniciação no exotismo das descobertas na vida. Vieram depois o Pedro, a
Gabriela, a Ana, que é mãe do Pedro. A todos conheci em casa, em lugares contornados pelos braços
da Ria de Aveiro.


‘Em qualquer aventura,/ O que importa é partir, não é chegar.’, foi sempre um lema da
‘Viagem’ de Torga que eu, adolescente tão sensível às raízes, não percebi por que me interpelou.
Efetivamente, veio a resposta (à dúvida poética e à entrevista) e ia eu para o “novo mundo”,
aprender-ensinar – e conhecer a professora açoriana - tu, Maria João! Eu cumpri a frase de Torga da
minha adolescência: o importante foi partir, foi a decisão e a entrada na nova missão. Mas, na popular
fala da minha Gafanha, foi um chegar e virar – da primeira viagem ao Canadá. Se fosse açoriana,
podia entrar sem os exames médicos; neste caso, tem de voltar para os fazer. Ironias da vida, enganos
administrativos que me guiaram assim, quem diria que se podiam ligar à poesia que sempre
podemos encontrar.

No, Sir, I’m not going to Ponta Delgada. I need a flight to Porto or Lisbon. Wait a second, please, o
Inglês também tem eufemismos, ou hipérboles ao contrário. O tempo naquele momento era pesado.
Mal chegara a Toronto!, partiria de novo. Sorry, miss, que o colega tinha dito que só tinham a
obrigação de me enviar para o meu país, para este efeito, Açores e continente já era tudo igual, you
can take the bus. Parei de caminhar, olhei o agente de frente e disse-lhe numa reação em inglês que não
me sabia capaz de ter: Sir, Azores is in the middle of the ocean! I want to go to the mainland! Tenho visto
que, a seguir a explosões sentidas, sempre se seguem momentos claros de abertura, como foi o resto
de tempo que passei com este agente de ar paternal. Não me enganei porque, da segunda vez – não
foi precisa uma terceira! –, lá estava ele, reconhecendo-me, cumprimentando-me a mim, e nessa hora
também ao Silvio, e tranquilizando-me antes de chegarmos ao gabinete da decisão: desta vez, está
tudo certo. É assim, este mundo organizado que a gente desenvolve pode ser muito falível, se calhar
para a gente não se esquecer da lógica superior do desconcerto, do que nos escapa.


Mas a transição – porque somos chamados a viver bem todos os momentos – teve a sua aurora
em São Miguel. Naquela manhã de verão, depois de uma noite de sono torcido mas catártico. Foi um
começo, mau, dir-se-ia. Os adjetivos às vezes são muito limitados. Assim estive eu nos Açores um
dia. Os primeiros passos ao sair do avião, aquela manhã clara de sol já de fogo, o cheiro a mar, estou
aqui, venha o que vier, há muita coisa para acontecer. E nem no aeroporto fui uma viajante a sentir-se
estranha. Logo encontrei uma funcionária, familiar do cunhado do amigo Pedro. E tinha ali a mãe do
Pedro. Não te preocupes, não é trabalho nenhum, os amigos dos meus filhos são meus também. Deve
ser mesmo grande este ser e amar de mãe, um dia hei de experimentá-lo na voz ativa. Uma canja
reconfortante, meloa de Santa Maria, no sabor e na cor diferente da que eu conhecia. E aquela
cortadinha já, para mim. O diminutivo é para mostrar o aconchego que eu senti no abraço e no
acolhimento desta mãe grande que não é minha, mas é mãe no mundo, para o mundo. Uva
americana – os Açores seduzidos pela América! Será? E pão, pão diferente, diria a minha mãe, que
afinal era bolo lêvedo.


Emocionada e deslumbrada pelos caminhos da vida, pelo verde-azul envolvente, ainda tive
tempo para um conviver nas Portas do Mar. Tempo para viver cada coisa. E assim voltei ao
continente e depois para aqui, donde escrevo, desta terra nova. E eu asseguro que queria escrever
sobre os açorianos todos que já conheci cá e que não consigo contar, sobre as malassadas que comi,
deliciada, sobre as danças da Páscoa, tradição de Carnaval terceirense, a que fomos com um novo
amigo… açoriano, o Leo. Tanta vida para viver. O mundo é tão grande.

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