Marquinha: Uma Avó (In)Vulgar
Sempre considerei que a minha avó era uma avó vulgaríssima. Os que conhecem a realidade dos Açores, saberão muito bem a quem me refiro: àquelas figures tristes, fantasmagóricas, fechadas de preto, de sorrisos magoados e corpos cansados. Elas reúnem certos rasgos psicológicos típicos das mulheres daquela geração: temem ambos Deus e Diabo, acreditam nas almas do outro mundo e dedicam-se totalmente a maridos já há muito defuntos, mas que continuam a dominá-las da cova. Sim, a minha avó era uma destas figuras – acabadinha, curvadinha, de mãos encardidas, desdentada, de cabelos brancos que, às vezes, ainda tentavam espreitar dos lados do lenço preto que os subjugava, símbolo de uma opressão que ela nunca questionou.
Viúva de um marido que eu praticamente nem conheci, a minha avó passou a sua vida como muitas outras mulheres, sem voz, sem nunca sabermos os seus íntimos desejos, invisível. Nos últimos anos tornaram-se evidentes no seu corpo as consequências de uma vida brutal que, numa idade demasiado tenra, começou no passar de mãos – do pai para o marido. Depois, seguiram-se seis filhos, criados em condições deploráveis, talvez ainda piores que aquelas que hoje em dia vemos na televisão nas barrigas de fome das crianças desses imensos terceiros mundos. Ela foi testemunha e vítima de crueldades, de violências domésticas, de maridos viciados no álcool, abandonados às tabernas, rejeitados, e o mundo dela condenou-a a ser o repositório de todas essas frustrações, o bode expiatório, Eva castigada mas sem nunca ter provado o fruto proibido.
Nos últimos anos a clareza de espírito que geralmente acompanha o amadurecer, obrigou-me a reconsiderar a vulgaridade da minha avó. Terá sido ela uma mulher vulgar? Na nossa relação de avó-neta, ela desempenhou a sua função de avó tal como dita a norma. Dava-me mimos infinitos, preparava-me os meus pratos preferidos – as famosas papinhas que eu ainda hoje adoro – enfim, tudo aquilo que é considerado habitual por parte de uma avó. Apesar da sua pobreza, ela ainda me legou uma gaveta de imensos objectos, de que se destacam botões de todos os tamanhos e feitios. Nessa gaveta, a minha imaginação de menina não tinha limites, e o tempo que eu passava a observar esse tesouro foi, sem dúvida, o inicio das muitas aventuras que ainda hoje vou tecendo. Tal como outras avós, a minha também sabia contar histórias ou melhor dito ainda causos, contos de acontecimentos extraordinários. Com o passar dos anos, as histórias de almas do outro mundo, matéria predilecta dos tais causos, deixaram de ser assustadoras e viraram cómicas. Hoje, rio-me do facto de a minha avó teimar na veracidade daqueles estranhos relatos. Éramos muito diferentes eu e ela.
Compreendi rapidamente que o nosso único elo comum era que ambas havíamos nascido mulheres, mas éramos seres de distintos planetas. Mesmo assim, a minha avó, longe de entender o meu mundo ou as minhas modernices, estava consciente de que o meu destino iria ser traçado por mim, pela minha vontade. Sei que ela me considerava, como mo disse inúmeras vezes, bonita e inteligente e, no seu carinho infinito, tudo sempre acabava bem, de preferência com as ditas papinhas. Infelizmente, nos meus limitados horizontes de criança, o que nunca considerei foi como e de onde é que ela conseguia retirar forças, carinho e tanta ternura, sentimentos que lhe foram sistematicamente negados.
Aqueles causos que ela me contava não eram meras fábulas, mas sim, como só agora consigo entender, património do nosso folclore ilhéu, hoje quase desaparecido. Actualmente, incomoda-me o rótulo de vulgar que dei à minha avó, porque a condenei ao silêncio e contribuí, desta maneira, para a sua exclusão da nossa história. Hoje, com ela já falecida há vários anos, ficou-me a amargura de não a ter conhecido melhor. Gostava de lhe ter perguntado se alguma vez tinha sido feliz, se alguma vez conhecera a paixão ou, como conseguira enfrentar aquele mundo escuro, o nada da sua existência.
Afinal não somos de distintos planetas. Foi dela que eu herdei o fascínio pelas bruxas, pelos lobisomens, pelas almas encantados e pelos cobrantos que habitavam os seus contos. O xaile que sempre usava inspirou a minha colecção de xailes: um preto, parecido com o dela, e outros mais audazes. Nunca lhe passaria pela cabeça exibir coisas tão safadas e garridas. Hoje, passeando na baixa de Toronto, paro e aprecio a minha avó invulgar. Admiro a minha imagem nas fachadas envidraçadas dos edifícios modernos da cidade e gosto do que vejo. A minha avó tinha razão – bonita e inteligente! Arranjo o casaco, dou uma volta triunfante ao meu xaile vermelho e aprecio o bater decidido dos meus saltos altos, que anunciam o meu caminhar altivo, seguro. Todo um comportamento tão distinto do da minha avó.
Na caminhada, olho de soslaio a minha imagem que oferece olhares penetrantes aos que se cruzam comigo. Sorrio ao pensar que esta gente não tem a mínima ideia de que eu sou menina das ilhas de bruma, que sou neta daquela avó invulgar que foi dona das memórias da nossa gente e de quem herdei a perseverança necessária para finalmente dar aquela volta triunfante ao meu xaile.
Passados todos estes anos, libertei a minha avó da masmorra do esquecimento, e coloquei-a num jardim de manjericos na minha décima ilha açoriana. Vivo consciente de que sou um vestígio dela. Faço-lhe uma reverência por saber que o meu coração é minúsculo em comparação com o dela – um coração enorme onde couberam todos os mundos possíveis e impossíveis.
Ao contrário da Leonor camoniana, não vou à fonte, mas sim à torre de marfim; caminho formosa e segura, com a certeza de que a minha pele deixa escapar um leve perfume de ilha e mar, o cheiro da minha avó, um pedacinho de uma história construída no feminino, a minha história.