Skip to main content Skip to local navigation

Memórias

Memórias

Sentada na cadeira ao lado da grande janela, Dona Castro olha para o jardim. No inverno quase ninguém sai para fazer caminhadas e o jardim parecia ser muito sereno, como um quadro de época de há muitos anos atrás. Isso sempre a levou a pensar em seu passado, infância, adolescência. Pensar em sua vida como mulher casada e mãe. Ela sempre se orgulhou em ser uma mulher que faz tudo o que quer e que alcançou todas as suas metas e que nunca deixou ninguém decidir por ela o que fazer com a própria vida. Uma mulher que teve muito sucesso profissional e pessoal, pelo menos aparentemente.

Depois dos estudos de liceu, como todo mundo, foi para a universidade. Não sabia o que estudar, afinal de contas, tinha apenas dezoito anos, e com dezoito anos o que é que se sabe da vida? Foi estudar a primeira coisa que lhe parecia ser interessante e útil. Agora refletindo sobre isso, ela sabe que foi o que os seus pais esperaram dela, mas na época não percebia isso. Ela sempre teve a convicção de que tudo o que fez foi por sua própria decisão, que foi ela que liderou sua vida. Agora, depois de muitos anos, de muita decepção e sucesso, tristeza e felicidade, ela aprendeu pelas dificuldades que a vida lhe apresentou que ninguém tem controle sobre nada, mas na época, jovem, cheia de convicção, de energia, querendo conquistar o mundo, ela achava que sabia algo sobre a vida. “Sabia tão pouco, tão pouco” disse agora, em voz baixa, olhando para o jardim, como se estivesse sonhando.

Ela foi estudar direito. Era inteligente. “Era uma das melhores alunas, sabe?!”, falou para alguém que passou atrás dela, não falando mesmo para essa pessoa, mas mais para o vazio – “tirei boas notas, boas mesmo. Mas não era fácil, não pense que era fácil, porque não era” – parando, vendo que ninguém estava ali, continuou, agora para ela mesma: “Era bem envolvida nas diferentes atividades da faculdade porque queria melhorar o mundo.” Disse e começou a rir. Ela sempre expressou sua opinião sobre tudo e nunca deixou ninguém oprimir seu direito de ser ouvida. Ela exigiu respeito, e sempre o recebeu. Agora tudo isso não tinha mais importância, tudo isso era falso, uma tentativa de encher um vazio que sempre se esforçou por ignorar, esquecer.

Conheceu seu marido no último ano da faculdade, eles se apaixonaram imediatamente e casaram-se três anos depois. Dona Castro nunca parou de trabalhar, nem quando teve as crianças. Era boa advogada e o trabalho exigia todo o seu tempo. Seu marido ficava mais em casa com as crianças, e ela ficava mais no tribunal. Às vezes ele dizia, meio sorrindo, que já não sabia quem era quem nesse relacionamento. Ela nunca respondeu, apenas sorriu de volta. Dentro dela, sabia que ele não estava tão contente, mas preferia ignorar, não queria que nada atrapalhasse seus planos, nem suas próprias dúvidas.

A vida que vivia foi o que ela quis, ou o que ela pensou que quis. Agora já não tinha muita certeza disso. Mas na época pensou que era um exemplo de como uma mulher devia ser. Forte, independente, trabalhadora. Era só isso que era importante “Meus filhos devem saber que mulher não precisa de ninguém, que pode fazer tudo o que quiser sozinha se precisar”. Foi o que ela sempre repetiu olhando com amor para seus filhos com olhos cheios de aflição.

A vida passou tão rápida. Parece que estava tão ocupada com a vida que se esqueceu de a viver.

Vivia a vida que achou ser ideal, a vida que todo o mundo esperava dela, que todo o mundo esperava de todos. Infância, escola, universidade, casamento, filhos, bom emprego, muito dinheiro, e sorrisos vazios. Fotos de famílias perfeitas com sorrisos vazios.

Olhando para o jardim, para as árvores congeladas e nuas, para as trilhas vagas, para a terra estática, ela lembrou-se de sua vida.

Agora sentada sozinha ao lado da janela na sala comunitária do lar de idosos, onde já vive há alguns anos, ela foi esquecida. Às vezes os filhos dela visitam-na. “Eles estão bem ocupados” é o que ela sempre diz, “não é nada, não é nada, eles sempre estão comigo aqui” – ela diz apontado em direção ao coração.

A maior parte do tempo ela passa a pensar. Ela sabe que não tem muito mais tempo para viver, sabe que é questão de alguns dias. Ela pode sentir a morte respirando em suas costas, mas ela não tem coragem de se virar. São poucos os que a podem confrontar quando o momento chega. Dona Castro, tão forte, tão independente, não teve essa coragem.

“A vida foi um teatro, sabe?! A vida foi um teatro.”
“Vamos então, Dona Castro? Já é tarde de mais e a senhora tem que ir dormir, não está com sono, não?”

A enfermeira perguntou de hábito como já fez muitas vezes antes. A Dona Castro, tão imersa em seus pensamentos, estava num outro lugar. “Sei que desempenhei o meu papel bem, sei, sei. Mas algo foi esquecido e agora já é tarde de mais”. Virando para a enfermeira tão rápido que até a assustou, Dona Castro falou olhando profundamente nos olhos dela: “Dentro de mim sempre tinha uma voz que preferi ignorar, mas sabia que existia. Você também acha que é tarde de mais?”. Uma lágrima solitária correu do rosto dela.

“Nunca é tarde de mais, Dona Castro”, respondeu a enfermeira, como sempre puxando a cadeira de rodas em direção ao elevador. “Vamos dormir?” Tali Yanuka Paonessa

Categories: